09 agosto, 2015

EH, MEU PAI!


Como de praxe nesta data, divido este poemeu com as pessoas cujo pai já foi viajar. Parafraseando Boldrin, fora ou dentro do combinado. Poema ilustrado, como sempre, pela heraclitiana canção "Poeira". A presente versão é de CARLINHOS VEIGA.
Saravá, Véi Leite!





eh meu pai!

         [poeira entra em meus olhos
         não fico zangado não
         pois sei que quando eu morrer
         meu corpo irá para o chão
         se transformar em poeira
         poeira vermelha
         poeira do meu sertão
         (que ouvi com o Duo Glacial lá pelos meus seis carnavais)]

eh meu pai nosso que estais comigo
santificado seja o nosso rumo
caminhas por onde estou
como eu danças no bojo do vento que brinca nesta beiramar
onde mulheres bonitas
         - ah como tu irias gostar de vê-las!
cheirosas balançando suas nádegas
prestes a romper justas malhas coloridas
         e ofuscar o sol
         maravilhar o sol
beiramar continuação
embora aparentemente distante
da morada da tua ex-carne
aparente porque quando olho tu olhas
sentes a escuma da cerveja que bebo
e te escuto a bronquear por minha barba
e meu cabelo comprido que este nosso vento bagunça
         e aquela do jogo de futebol entre cabelo ruim e cabelo bom? hein?
         sabes que riem quando esta tua nossa história
e outra vez desobedeço
filho do Leite que sou
e se fosse diferente terias vergonha de mim
como teve em Pedregulho
enquanto me gritavas teu orgulho
         - na nossa família tem criminoso; ladrão, não!

eh meu pai nosso que estais comigo
quando passo/passa por mim uma bela mulher
solteira casada tanto faz
e me lembro do quanto demorei para perceber
o porquê daquele teu sorrir safado
quando tocava a ponta do nariz com a língua
continuas vivo
nos chanfros onde derramastes tua solda
dos cafundós das Geraes aos cafundós da África
da Rua dos Cachorros ao Brega de Candeias

eh meu pai nosso que estais comigo
rei dos cavalos bravios de Peçanha
criado a broto de samambaia e angu
desafiando as leis protéicas e vitamínicas
em tuas mortes não morridas
         tuberculoses maleitas costelas quebradas
         eletrochoque apendicites e etc
e o petit déjeuner de cerveja e conhaque

eh meu pai nosso que estais comigo
como nos domingos curitibanos de missa feijoada e zoológico
das cervejas no Caneca de Sangue
dois perdidos em Jacarezinho depois de goles de Ipanema
as noites nos botecos da baixada fluminense
e aquele insólito estilo de dividir a grana:
         fregueses dos botecos saindo sorrateiros atrás de fregueses do boteco
e voltando sorridentes a contar o dinheiro dos fregueses do boteco:
a grana de mão em mão até à gaveta do balcão
onde descansaria até ser coletada sob mira do treizoitão
e outro balcão outro freguês outras mãos outras...
do baixo dos meus 20 anos olhava pra ti
e ouvia teu já conhecido mote, desde Curitiba
         - onde tem gente vai gente
e lá íamos outra vez pra dentro da noite
cruel moedora de hipócritas e frouxos
bundas-moles rejeitados até pelo ralo da vida
a se perguntarem o quê fazer na superfície
além de bancarem os prazeres sadomasô de farmacêuticos
advogados cardiologistas psyco-gurus
e outras espécies de geriaputas

eh meu pai nosso que estais comigo
te vejo correndo atrás do Gentil homem
que atirou em meu primeiro amigo Suíço
protagonista da primeira cena de cinema
que ainda habita minhas retinas por quase meio século;
tu quixoterói canivete na mão rua abaixo
no encalço de Gentil e seu 38 que lhe pedia:
         - não vem Leite, não vem!
e Mareca correndo e gritando e caindo na poeira sobre um Tião ainda em seu ventre
e tudo na hora do almoço
e eu tinha 4
e por esta e outras cenas do mesmo naipe
hoje ultrapasso os 400

eh meu pai nosso que estais comigo
e com teus filhos por sangue ou escolha e amigos
que dionisiacamente te saudaram noite adentro
rindo de suas/nossas histórias
sorrisos porque não mereces choro
nem a hipocrisia do respeito
         que respeito é súplica dos fracos

eh meu pai nosso que estais comigo
cavalgando alta mula de arreios tilintantes
cruzastes o Suassuí-Poca
         este nosso Hades
reza de Vó Rosa a abrir porteiras
e no pa-ca-tá pa-ca-tá das patas levantando a terra vermelha
tua alegria a se fundir com o horizonte

eh meu pai nosso que estais
vivo é o vosso sumo

lagoa, 28/11/06