O papo é diretamente dirigido ao pessoal envolvido na produção audiovisual no âmbito do Município de Florianópolis. Entretanto, talvez tenha a ver com todo mundo de todo o Mundo. E por que digo isto?
O que você tem a ver com CULTURA? Já se perguntou sobre isto? O que sente quando ouve alguém a dizer que fulano ou sicrano não tem cultura? Você se considera alguém que tenha cultura?
O artigo/desabafo abaixo transcrito é de EDUARDO PAREDES que, pelo jeito, ainda pratica a NOVEMBRADA. Foi publicado no caderno de cultura do Diário Catarinense em 30/11/2013. Mesmo que você, caro leitor, pulule em outras regiões que não seja nossas belas e desamparadas Floripa e Santa Catarina, o teor pode ser muito útil como peça instigadora à ação.
Deixe a preguiça de lado, só um pouquinho, e leia junto. Sugestão: não tire as crianças da sala; ao contrário, leia em voz alta para elas.. A vida delas tem muito a ver com tudo isto.
A morte do poeta e os ecos da
“novembrada”
Historicamente
Santa Catarina é um estado privilegiado, como poucos, em termos de produção
cultural. A pluralidade e diversidade desse patrimônio imaterial advêm,
acredito eu, de um encantamento com suas belezas naturais e do encontro das
inúmeras etnias que se espalham por todo o território catarinense. Por isso
mesmo, é absolutamente inadmissível que a Cultura continue sendo (mal) tratada
como peça assessória no contexto das políticas governamentais. Essa riqueza
artística e cultural acumulada é que dá identidade ao povo catarinense. No
entanto, infelizmente, o setor cultural vem lutando para sair do plano do
supérfluo e ganhar a importância que lhe é devida.
Em termos de
política pública cultural o que constatamos é um estado de abandono,
desrespeito e contínua omissão. Há muitos anos a Cultura foi embrulhada num
mesmo pacote com o Turismo e o Esporte, compondo uma Secretaria que já se
chamou SOL – Secretaria da Organização do Lazer, inspirada nas teorias do “ócio
criativo” do sociólogo italiano Domenico De Masi. Qual o sentido de se
"organizar o lazer" e de se pregar o "ócio criativo",
especialidade na qual boa parte dos nativos da Ilha de Santa Catarina são
PHD?Parece piada, mas não é.
Tendo recebido
como herança maldita do seu antecessor, o atual governador manteve intacta a
estrutura de Governo que, a par das chamadas Secretarias Centrais, sustenta a
paquidérmica coleção de quase 40 Secretarias de Desenvolvimento Regional.
Qualquer cidadão com um mínimo de bom senso, informação e cultura reconhece que
esse modelo condena o Estado a uma situação de profunda anemia financeira. É
cristalino que essas SDR somente existem para acomodar cabos eleitorais e que a
descentralização poderia muito bem ser executada através de Coordenadorias,
Diretorias ou Gerências. Mas quem se atreve a cortar as benesses, mordomias e
privilégios contidos no status de Secretaria? Por que arriscar a base de
sustentação política que assegura a continuidade no poder? Ninguém é bobo –
somente o povo, o contribuinte, que paga a conta.
É triste
reconhecer que o Governo do Estado, tão pródigo na criação e manutenção de
tantas Secretarias, não dê autonomia e independência para esses três setores
importantíssimos, que são o Turismo, o Esporte e a Cultura. Não há como
reconhecer a importância do Turismo para a economia do Estado. Mas esse setor
também não consegue se desenvolver e expandir suas potencialidades da forma
como está situado. As demandas do Turismo são vastas e complexas e precisam de
um planejamento próprio. O mesmo vale para o Esporte e a Cultura, que são
determinantes para uma política pública séria que pensa em formação de
cidadania e inclusão social. Se em determinado momento o Turismo se entrelaça
com a Cultura, essa área de convergência é ínfima para justificar tal atrelamento.
Arrisco dizer que de cada mil turistas que visitam o Estado, depois da praia
menos de uma dúzia procuram por um museu, teatro ou galeria de arte. O destino
natural são os shoppings, bares, restaurantes e baladas. Isso é óbvio.
A Cultura
padece ainda mais por esse equívoco administrativo, pois sobrevive à sombra do
Turismo. As casas de cultura e espaços culturais vivem à míngua. Os artistas há
muito foram deserdados, com os poucos editais públicos de fomento às atividades
artísticas sendo ano a ano empurrados com a barriga, procrastinados ou adiados.
O que impera é a política neoliberal de transferência de responsabilidade das
decisões sobre a Cultura para a iniciativa privada, na medida em que a
principal ação de governo é induzir os produtores e agentes culturais a
utilizar os mecanismos de incentivo fiscal. Isso quando o próprio Governo não
compete de forma desigual com os produtores independentes, indo ao mercado
captar patrocínio para seus próprios projetos, como no caso emblemático da
Ponte Hercílio Luz. E com isso, o que resta como marca de ação governamental
são a ausência, o autoritarismo e a instabilidade na área cultural.
Na última
segunda-feira, 25 de novembro, tive a honra de ser agraciado com a Medalha do
Mérito Cultural Cruz e Souza. A maior honraria da Cultura no Estado, algo que
nunca cobicei e que jamais imaginei alcançar. Ainda tenho dúvidas se de fato
sou merecedor de tal distinção. Mas como estava em ótima companhia, resolvi
aceitar. Juntos estavam, in memoriam, o mestre Zininho e o escritor Holdemar de
Menezes, mais o coreógrafo Amarildo Cassiano, do Ballet Bolshoi de Joinville, o
cenotécnico e administrador cultural Osni Cristóvão, o historiador e fotógrafo
Joi Cletison Alves, e as instituições Associação Coral de Chapecó, Federação
Catarinense de Teatro – FECATE, Museu Victor Meirelles e Biblioteca Pública do
Estado. Confesso que quando o escritor Amilcar Neves, membro do Conselho
Estadual de Cultura, fixou em meu peito a medalha que leva o nome de Cruz e
Souza, a emoção bateu forte e invadiu a minha alma. Um momento fugaz, que
ficará guardado eternamente. Só que a realidade dos fatos logo me fez trocar em
parte a alegria pela tristeza, o envaidecimento pela indignação.
A começar pela
consciência de que a sina de Cruz e Souza, apesar da passagem do tempo, ainda
persiste entre boa parte dos que se atrevem a fazer da arte uma profissão de
fé. Gênio do simbolismo universal, maior poeta brasileiro de todos
os tempos na minha modesta opinião, Cruz e Souza morreu na mais absoluta miséria.
Em vida, sofreu na pele negra a rejeição causada pelo preconceito e racismo,
tendo suportado a dor de ver quatro de seus filhos morrerem de tuberculose e a
mulher Gavita enlouquecer aos poucos diante de tanto sofrimento, decorrente da
fome e da péssima condição de vida da família. De Minas Gerais, onde havia ido
buscar tratamento para a tuberculose que por fim também o levou, o corpo de
Cruz e Souza foi transportado em um vagão de trem que levava gado para o Rio de
Janeiro, onde foi sepultado praticamente como indigente. Bastou morrer para que
a sua genialidade fosse reconhecida, sendo alçado ao panteão do simbolismo
universal ao lado de Verlaine, Rimbaud e Mallarmé. Mas seus restos mortais,
trasladados alguns anos atrás para Florianópolis, a sua cidade natal, entre
discursos demagógicos e foguetórios, vergonhosamente continuam abandonados num
canto perdido do Museu Histórico que, solene e ironicamente, também leva seu
nome – Palácio Cruz e Souza.
Enquanto as
medalhas iam sendo distribuídas eu me afundava na poltrona e em meus
pensamentos cada vez mais cinzas. Olhando o palco do Teatro Álvaro de Carvalho,
fundado em 1857 e que tantos artistas e espetáculos memoráveis acolheu ao longo
de sua história, lembrei-me de que ele também, Álvaro de Carvalho, o primeiro
dramaturgo catarinense, igualmente não teve o descanso eterno que merecia e o
respeito que se esperava dos governantes catarinenses. Seus ossos mortais
continuam abandonados em Buenos Aires, aonde veio a falecer de febre tifoide em
1865.
Pensei em
Zininho, o nosso poeta maior, autor do hino oficial da capital catarinense.
Enquanto sua viúva e sua filha recebiam a comenda que, em seu caso, já veio
tarde, também lembrei de toda a privação que passou no crepúsculo de sua vida.
O nosso maior músico, Luiz Henrique Rosa, que naquela mesma data se vivo fosse
completaria 75 anos, também foi solenemente ignorado. Assim como a data
litúrgica, 25 de novembro, que é dedicada a Santa Catarina - padroeira dos
artesãos, artistas, bibliotecários, jovens, estudantes e desse Estado – sequer
foi mencionada pelo cerimonial, num lapso imperdoável. Pior foi constatar que o
desprestígio e desapreço pela Cultura catarinense se evidenciava na ausência de
quem se esperava exatamente o contrário. Não apareceu nenhum senador, deputado, representante
do prefeito, vereador, secretário de Estado (além do titular da pasta do
Turismo, Esporte e Cultura, Valdir Walendowski), sequer representantes
das entidades culturais (com raras exceções), assim como nenhuma cobertura por
parte dos jornais ou emissoras de televisão. O próprio Governador do Estado,
Raimundo Colombo, que foi quem assinou a outorga da Medalha do Mérito Cultural,
vim a saber pela coluna do Cacau que naquele exato momento tinha ido ao
shopping assistir a um filme depois de dez anos sem ir ao cinema. Poderia
ter esperado um pouquinho mais. Gostaria muito de ter dirigido a fala que me
encarregaram em nome dos homenageados (e que reproduzo em parte nesse artigo)
olhando nos olhos do nosso governador só para ver qual a sua reação e o que
teria para dizer. Por isso, só tenho uma palavra para resumir o que
ocorreu: lamentável!
Ao que parece,
os sismógrafos dos políticos e governantes continuam desligados. Não captaram
ainda os tremores que vêm das ruas, do povo anônimo e cada vez mais impaciente.
Esqueceram-se dos ecos da “novembrada” (que hoje faz 34 anos e que também deve
passar no esquecimento), assim como das “diretas já”, do impeachment do Collor
e até mesmo das manifestações que varreram esse país como um tornado em meados
deste ano. Podia ainda lhes lembrar da revolução francesa e bolchevique, da
chinesa e da cubana, com as consequências diretas para os incautos governantes
que também ignoraram as vozes inconformadas que vinham das ruas. Mas prefiro
mirar a outra margem: se os governantes não mudam, que se mudem os governantes.
Para tanto, é necessário que o povo se mobilize, permanentemente, determinado a
combater essas redes piramidais de apadrinhamento que mantêm inabaláveis as
estruturas desgastadas do poder e que permitem aos seus ocupantes manterem por
longos períodos o estamento e o status que lhes asseguram as benesses e as
vantagens que ele, o povo, banca. Mas para isso é preciso liberdade de
informação e um processo contínuo de cidadania, educação e inclusão cultural.
Ainda haverá o
dia em que o slogan para esse nosso Estado, muito mais do que uma mera peça
publicitária artificial, mas como reflexo concreto de um pacto pela Cultura
entre governo e sociedade, seja de verdade “Santa, Bela e Culta Catarina”!
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