Pra fechar esta série (porque o assunto permanecerá), que tal reler esta postagem de REINALDO AZEVEDO a respeito de artigo de MÍRIAM LEITÃO sobre a questão racial brasileira, na qual ela trata de cotas raciais, inclusive. O artigo de Míriam a que Reinaldo se refere é DESTRUIR A OBRA.
Que tal refletir sobre o tema deixar sua opinião nos comentários.
08/03/2010 às 20:44
A
jornalista de economia Miriam Leitão é um dos alvos costumeiros do
subjornalismo a soldo que toma conta da Internet. Mais de uma vez, sua
reputação profissional foi atacada de maneira vil pelos tontons-maCUTs,
especialmente nos tempos em que ela ficou praticamente sozinha na defesa da
sobrevalorização cambial. À época, eu achava que ela estava equivocada — o que
ficou claramente evidenciado. Mas nunca considerei que fosse má fé. Às vezes,
as pessoas erram.
Seu
prestígio profissional, felizmente, sobreviveu a um erro histórico. Sinal de
que ela tinha e tem qualidades que podem suportar uma escolha errada. Quando se
erra de boa-fé, sempre há a chance para corrigir as falhas. Miriam, é verdade,
nos tempos da sobrevalorização cambial, não abria muito espaço para o
contraditório. Havia sempre a sugestão nada leve de que os que se opunham à sua
teoria gostavam mesmo era de farra, de inflação, de gastança.
Compreendo.
Há pessoas que têm esse temperamento, vamos dizer, obsessivo. Quando abraçam
uma causa, consideram que o contraditório significa uma aposta na barbárie.
Sentem-se, assim, donas da civilização, do moderno, do progresso.
Miriam
tem, no momento, duas “sobrevalorizações cambiais”: o aquecimento global e o
suposto racismo no Brasil. A simples sugestão de que as coisas possam não ser
como diz a militância basta para que os “adversários” sejam lançados à condição
de obscurantistas, de reacionários, de inimigos do progresso e da civilização.
Sua
coluna no Globo, reproduzida em seu blog, sobre a fala do senador Demóstenes
Torres é um primor de preconceito, grosseria e, lamento dizer, confusão
conceitual e histórica. Não vou me ater à sua leitura do racismo etc e tal
porque repetiria argumentos. Quero me fixar na segunda metade do artigo. Ela
vai em vermelho; eu, em azul:
No
Brasil, o esforço focado nos negros é chamado de discriminação. E os brancos
pobres? Perguntam. Eles estão também nas ações afirmativas, e nas cotas, mas o
curioso é que só se lembre dos brancos pobres no momento em que se fala em
alguma política favorável a pretos e pardos.
Miriam
Leitão faz de conta que ela respondeu a questão que ela mesma se fez. Mas não
respondeu. Recoloco a pergunta: “E os brancos pobres?” Ainda que fosse verdade
que só se lembraram deles agora, a questão continua sem resposta. E é
mentira que as coisas pararam por aí: muitos defendem — NÃO É O MEU CASO, DEIXO
CLARO — cotas sociais nas universidades. Não é o meu caso porque acho que o
problema está na qualidade dos ensinos fundamental e médio.
É
temporada da coleção de argumentos velhos que reaparecem para evitar que o
Brasil faça o que sugeriu Joaquim Nabuco, morto há 100 anos, em frase
memorável: “Não basta acabar com a escravidão. É preciso destruir sua obra.”
Máxima
vênia, o Nabuco de Miriam Leitão tem a mesma profundidade do Gilberto Freyre de
Aiatoéllio Gaspari. A frase pinçada inverte o sinal da obra do abolicionista
pernambucano. Ele pensava numa nação integrada, não num país que subtraísse
direitos de alguns pobres porque brancos para dar a outros pobres porque negros.
É essa imoralidade básica que Miriam Leitão e os defensores das cotas se negam
a debater.
Diante
de qualquer proposta para reduzir as desigualdades raciais, principal obra da
escravidão, aparece alguém para declamar: “Todos são iguais perante a lei.” E
são. Mas o tratamento diferenciado aos discriminados existe exatamente para
igualar oportunidades e garantir o princípio constitucional.
O
argumento é tristemente falacioso. Isso não poderia ser feito subtraindo um
direito universal. E o direito de um estudante — branco, pobre, preto, rico ou
pobre — ter acesso à universidade segundo o critério do desempenho está
assegurado pela Constituição. Miriam está confundindo as bolas. O negro não
pode ser tratado como um portador de necessidades especiais. Aliás, eis um bom
exemplo: cada vez mais, com acerto, os locais públicos se caracterizam pela
chamada “acessibilidade”: as pessoas com deficiências merecem um tratamento
desigual para que possam ter direitos iguais. CORRETÍSSIMO. Mas os direitos dos
outros continuam intocados. Ademais, esquece-se o que está em debate: na UnB,
um branco pobre pode ser preterido em benefício de um negro rico. Isso é um
fato. O sistema é tão estúpido que aprovou um dos gêmeos no regime de cotas e
rejeitou o outro. O Brasil precisa cuidar é de fazer com que a universidade
pública, especialmente nos cursos de alta performance, não seja monopólio dos
ricos.
O
senador Demóstenes foi ao Supremo Tribunal Federal com um argumento extremado:
o de que os escravos foram corresponsáveis pela escravidão.
É
mentira, Miriam Leitão! Sua afirmação é tão mentirosa quanto aqueles que
afirmavam que você defendia a sobrevalorização cambial porque tinha interesses
escusos no sistema. O senador Demóstenes não afirmou isso. Ao transcrever a sua
[dele] fala, você mesma prova que não.
“Todos
nós sabemos que a África subsaariana forneceu escravos para o mundo antigo,
para a Europa. Não deveriam ter chegado na condição de escravos, mas chegaram.
Até o princípio do século XX, o escravo era o principal item de exportação da
pauta econômica africana.”
Estude
mais e se indigne menos. É história. E isso não faz os escravos co-responsáveis
pela escravidão.
Pela
tese do senador, eles exportaram, o Brasil importou. Simples. Aonde o crime?
Tratava-se apenas de pauta de comércio exterior. Por ele, o fato de ter havido
escravos na África; conflitos entre tribos; tribos que capturavam outras para
entregar aos traficantes, e tudo o mais, que sabemos, sobre a história
africana, isenta de culpa os escravizadores.
Quem
disse que isenta? Isso é só um relato do que foi a história da África e do que
foi a história da América e da Europa. Quem está fazendo a leitura moral é
você, não Demóstenes.
Trazido
a valor presente, se algumas mulheres são vítimas de violência dos maridos,
isso autoriza todos a agredi-las.
A
afirmação é de uma estupidez ímpar. Como Miriam Leitão saltou de uma coisa para
chegar à outra é um desses mistérios típicos de uma mente militante, que
submete o pensamento ao filtro do ódio. Nesse estágio, ela já parou de pensar.
Ou
se há no Brasil casos de trabalho escravo e degradante, isso permite aos outros
povos que façam o mesmo conosco. Qual o crime? Se brasileiros levam outros
brasileiros para áreas distantes e, com armas e falsas dívidas, os fazem trabalhar
sem direitos, qualquer povo pode escravizar os brasileiros.
Desculpe
a palavrinha dura, mas o nome disso é vigarice intelectual. Assim seria se
Demóstenes tivesse LEMBRADO FATOS HISTÓRICOS para justificar a escravidão. Mas
ele não fez isso. Essa é a mentira que vocês, militantes, inventaram.
O
senador Demóstenes é um famoso sem noção e com ele não vale a pena gastar
munição e argumentos. Que ele fique com sua pobreza de espírito.
Bem,
aqui Miriam Leitão revela toda a qualidade do seu argumento. Não podendo
contestar o senador, diz que é melhor “não gastar munição”. Bela maneira de
debater! Basta desqualificá-lo, e tudo está resolvido. Quais são os outros
episódios em que Demóstenes se mostrou um “famoso sem-noção”? Em que mais,
a seu juízo, ele está errado? Desde quando a história real, vivida,
documentada, é evidência de “pobreza de espírito?”
O
que me incomoda é a incapacidade reiterada que vejo em tantos brasileiros de se
dar conta do crime hediondo, do genocídio que foi a escravidão brasileira.
Há uma
boa possibilidade de que Miriam Leitão não saiba o que é “genocídio”. Até como
metáfora ou hipérbole, a palavra é ruim. Por maus motivos do ponto de vista
moral, mas atendendo a um sentido econômico, senhora repórter e colunista de
economia, fosse a cor de pele sinônimo de raça, a economia colonial não
incentivou o genocídio, mas a multiplicação de negros. Era capital. O fato de
praticamente a metade dos brasileiros ser mestiça indica a facilidade com que,
depois, a miscigenação aconteceu. Quando ela decidir se reunir com Aiatoélio
Gasparti para ler Casa Grande & Senzala, vai descobrir,
inclusive, que o negro foi o elemento mais, digamos, hígido da formação do povo
brasileiro. A tese do genocídio é parente da tese do “estupro original”, e
ambas são manifestações da ignorância militante. Miriam Leitão escreve sobre
economia. Espera-se dela um aporte racional. O que afirma acima tem muito de
fígado e nada de cérebro.
Não
creio que as ações afirmativas sejam o acerto com esse passado. Não há acerto
possível com um passado tão abjeto e repulsivo, mas feliz é a Nação que
reconhece a marca dos erros em sua história e trabalha para construir um futuro
novo. Feliz a Nação que tem, entre seus fundadores, um Joaquim Nabuco, que nos
aconselha a destruir a obra da escravidão.
Ah,
as ações afirmativas não são o acerto com o passado? E como é que se faz esse
acerto, então? Agora Miriam Leitão decidiu que não está nem de um lado nem de
outro: está ACIMA do debate. É um bom lugar para ficar desde que se diga por
quê e com quais elementos. Eu também não acho que as ações afirmativas sejam o
acerto com esse passado; eu também acho que é preciso reconhecer os erros — só
não sei, e nem ela sabe, o que é exatamente “a nação” culpada. Eu acho que essa
culpa não está no branco pobre preterido na universidade porque não tem a
cor considerada influente pelos ongueiros e pela Fundação Ford.
Quanto
a passados abjetos e repulsivos, vamos ver. Miriam Leitão diria o mesmo sobre
os povos africanos que escravizaram povos africanos? Gana, por exemplo, tem
“acerto possível” com seu passado repulsivo? E a Europa? E os Estados Unidos? E
o Brasil?
Alô,
Miriam Leitão, responda-me: ONDE É QUE SE ESCONDE A TRIBO DOS HOMENS INOCENTES?
Eu lhe respondo: na imaginação de alguns europeus apostaram no bom selvagem
nas Américas. Até que chegaram aqui e descobriram que os bons selvagens comiam
Sardinha. Eu estou me referindo, Miriam, ao Bispo Sardinha!
Miriam
Leitão é uma competente jornalista de economia. Até quando ela erra, sempre o
faz com muito estilo. O melhor elogio que lhe posso fazer é este: às vezes,
prefiro ela errando a outros acertando. Por isso, quero impedir que ela se
torne, sei lá, uma espécie de romântica desacorçoada. Há, sim, Miriam, forma de
a gente se acertar com o passado abjeto: construindo uma sociedade democrática,
onde todos sejam iguais perante a lei e onde vigore o estado de direito.
Onde
quer que esse modelo tenha sido aplicado, acredite, os resultados foram
excelentes. Já os que tentaram outro caminho — e tanto você como eu acreditamos
nele um dia — só produziram injustiças e uma montanha de cadáveres.
Desculpe-se
com o senador Demóstenes, Miriam. E não se desespere. A civilização tem futuro!
Por Reinaldo Azevedo
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